Retenção de Talentos ou  Retenção de Pessoas

Oct 04, 2023

Recentemente, deparei-me com um artigo num jornal diário que destacava a estratégia de um município, focada na retenção de talentos. Não vale a pena mencionar qual era o município em questão, pois, na verdade, esta tem sido uma tendência comum na gestão de muitos territórios nos últimos anos. 

Curiosamente, esta estratégia de foco nos talentos surge após uma era onde a ênfase estava nos empreendedores.

Tal mudança leva-nos a refletir: e as pessoas que não se enquadram nesse molde de "talento" específico, onde ficam? Será que as estratégias atuais têm espaço para aqueles que, apesar de não serem extraordinários em algo particular, são, no entanto, peças cruciais na engrenagem social e produtiva de uma comunidade? 

Esta crescente valorização do talento pode estar inadvertidamente a criar uma cultura excludente, onde quem não se destaca num determinado domínio sente-se à margem ou, até mesmo, desvalorizado.

No mundo corporativo, frequentemente somos confrontados com o conceito de 'retenção de talentos'. Estas duas palavras tornaram-se quase um mantra para gestores, empresas e estratégias territoriais, que procuram assegurar os melhores profissionais no mercado. No entanto, ao focarmos apenas no 'talento', corremos o risco de negligenciar o aspecto mais fundamental da equação: as pessoas.


Retenção de Pessoas: Uma Abordagem Humana

As sociedades não são compostas apenas por talentos excepcionais, mas sim por pessoas - seres humanos com uma panóplia de experiências, competências e habilidades que, juntas, formam o tecido social e económico. Algumas pessoas têm talentos extraordinários em determinadas áreas, enquanto outras são especialistas noutras. No entanto, todas contribuem para o desenvolvimento e progresso de uma empresa, de um município, de um território, mas o mais importante, da  sociedade.

"Ao focarmos apenas no 'talento', corremos o risco de negligenciar o aspecto mais fundamental da equação: as pessoas."

A retenção de pessoas, portanto, deve ser a abordagem principal. Ao concentrarmo-nos apenas nos talentos, podemos acabar por perder bons profissionais que, apesar de não serem considerados "estrelas" numa determinada área, trazem consigo uma riqueza de experiências, competências e valores que são indispensáveis para qualquer organização ou sociedade.


Hotelaria e Restauração: Um Espelho desta Realidade

A indústria da hotelaria e restauração é um excelente exemplo desta dinâmica. Embora os restaurantes possam ser conhecidos pelo talento excepcional de um chef, estes não funcionariam sem uma equipa completa de profissionais em todas as áreas - desde a recepção, passando pelo serviço de mesa, até à cozinha.

É verdade que um chef talentoso pode atrair clientes e criar pratos incríveis, mas quem garante que o ambiente do restaurante seja acolhedor? Quem assegura que os clientes recebam um serviço de qualidade, atencioso e profissional? E quem zela pela eficiência operacional nos bastidores?

Os restaurantes, tal como outras empresas, são organismos vivos que necessitam de uma combinação harmoniosa de diferentes profissionais. Nem todos têm de ser 'talentos', mas todos precisam ser bons profissionais com a devida formação e especialização.

Ao enfatizarmos constantemente a necessidade de reter talentos, corremos o risco de obscurecer a essência humana intrínseca ao mundo laboral. Esta abordagem, focada na excelência e distinção, pode inadvertidamente marginalizar aqueles que, embora não se identifiquem ou sejam reconhecidos como "talentosos" nos moldes convencionais, são igualmente essenciais para o funcionamento e sucesso de uma organização. 

"Ao enfatizarmos constantemente a necessidade de reter talentos, corremos o risco de obscurecer a essência humana intrínseca ao mundo laboral."

Esta sobrevalorização do "talento" pode levar ao descontentamento daqueles que desejam, acima de tudo, contribuir com dedicação, esforço e integridade. A comunicação contínua sobre a importância do talento pode resultar numa cultura onde se sente que só a excepcionalidade é valorizada, desmotivando quem simplesmente quer trabalhar e fazer a diferença no seu dia-a-dia.